Como é que depois de uma manhã horrível, que termina sentada num banco a olhar o rio e ouvir músicas do mais triste que há passa, só devido a alguns dedos de conversa, um olhar e uns sorrisos, a um estado de ânimo que inclui sorrir por tudo e por nada, cantar e até tocar a Marcha Turca do Mozart*?
Há com cada coisa…
(Se algum dia, não sei porque carga d’água, for parar a um laboratório para fazer investigação prometo debruçar-me sobre esta matéria.)
Ou então é um mecanismo só mesmo meu e sendo assim tenho um problema grave; gravíssimo.
* Para mim só é aceitável tocá-la naqueles momentos que me apetece agredir alguma coisa ou quando estou mesmo feliz.
Quarta-feira, 13 de Maio de 2009. São 0h06 minutos.
A madrugada chegou. Viro a página da minha agenda e a data faz-me pensar. Sobre a minha cama fecho os olhos e afasto a pesada cortina do tempo. Já de lado, desvenda-me parte de um filme levemente empoeirado pela memória de há tempos idos.
Vejo duas meninas.
Cabelos de oiro e cabelos de avelã. Um fato-de-treino e uns ténis; um vestido e umas sandálias… Corações tão parecidos…
Passeiam-se numa qualquer rua pequena, num passo de quem vai a caminho da escola, ou num passo de quem se dirige aos repuxos, novos em folha, para correr entre eles. Tanto faz qual é o passo… A vida não lhes dá preocupações.
Chego perto e ouço-lhes o diálogo. Riem da manhã já passada, tagarelam sobre importantes trivialidades e fazem de adivinhas do seu futuro:
- Vai ser tão bom quando tivermos dezoito anos! – começa a primeira.
- Eu mal posso esperar – sorri – Já imaginaste? Fazer tudo o que quisermos? Ser independentes? – um novo sorriso desenhado pelo sonho da ilusão.
- E vamos tirar a carta!
- E depois vamos para a universidade…!
- Ai aí é que vai ser altamente! Arranjamos uma casa no Porto e vamos para lá estudar e morar juntas!
- Pois é! Pois é! Fogo, nós a morar juntas, no Porto… Vai ser o máximo.
- Ah.. e mesmo que não fiquemos juntas vamos fazer imensas festas e vamo-nos visitar!
- Claro!! Vai ser tão fixe…
O dialogo perde volume à medida que se afastam… Não as sigo. Afinal elas não têm nada para fazer. Provavelmente estão agora a dirigir-se àquela loja de jogos, onde vão colocar as mãos em forma de concha sobre a montra, combatendo o sol que lá se projecta, com a ansiosa esperança de ver lá a nova chegada. Ou vão então a caminho da loja de animais, onde entre uma espreitadela e outra vão sonhando com um dos pequenos que lá se encontra.
… De facto têm razão aqueles que me dizem que a vida está para os jovens.
“Quando tivermos dezoito anos…” A frase repete-se na minha mente, como que a recordar-me de uma promessa que ficou por cumprir. É a memória a convidar a nostalgia a instalar-se… Investem uma vez mais, ambas, com a recordação e eu forço-me a reagir.
“Ficaste muito tempo adormecida, memória. Os dezoito já são teus; por aqui avizinham-se os vinte.”
Recoloco a tampa da memória mas ela faz-me olhinhos… Cedo para mais um flash-back.
De novo as mesmas personagens. Já o esperava...
A noite caiu e o corpo acusa-lhes as horas de dança. Já passou o debate sobre o canto de um pássaro às quatro da madrugada… Fala-se agora de coisas mais sérias. Debruço-me um pouco mais, mesmo a tempo de ouvir…
“… e então ele - ”
Silêncio.
Mais silêncio.
Cinco segundos.
Seguem-se sussuros de um nome; um pedido de explicações… e explicações dadas.
Risos abafados, imensos – autêntica felicidade.
A madrugada tem esse poder sobre elas. É a madrugada e as espécies de primatas, daqueles que Darwin estudava. Ou seriam tentilhões?
Sou eu, no presente, quem agora sorri. As memórias têm esse poder.
Abro os olhos e suspiro.
O leque de imagens para escolher é grande e variado… Mas os quase vinte começam a pesar e a vida já não é só feita de despreocupações.
“Vá, mais uma…” penso.
Cerro os olhos, de novo.
Duas pequenas figuras despedem-se, lá no alto, da vista sobre a cidade, naquele Sábado de manhã. São elas, claro.
A figura de pedra branca, imóvel, fica para trás enquanto as duas se lançam à aventura pela estrada.
Descem nas suas bicicletas a uma velocidade desmedida… alheias a tudo. O perigo não existe. Só existe aquele êxtase. Felicidade e aquele vento a bater no rosto, fresco, puro, são…
Reabro os olhos.
Fico-me por aqui. Hoje quero adormecer com esta recordação: Sentir-me de novo a menina dos cabelos de avelã com a amiga dos cabelos de oiro.